Georges Humbert, advogado, professor, doutor e mestre em direito pela PUC-SP, com pos-doutoramento pela Universidade de Coimbra, Portugal, presidente do Ibrades e autor, co-autor e organizador de mais de 40 livros.
Quilombolas são os descendentes e remanescentes de comunidades formadas por escravizados fugitivos (os quilombos), entre o século XVI e o ano de 1888 (quando houve a abolição da escravatura), no Brasil. Atualmente as comunidades quilombolas estão presentes em todo o território brasileiro, e nelas se encontra uma rica cultura, baseada na ancestralidade negra, indígena e branca. A origem em comum dos remanescentes de quilombos é a ancestralidade africana de negros escravizados que fugiram da crueldade da escravidão e refugiaram-se nas matas. Com o passar do tempo, vários desses fugitivos aglomeravam-se em determinados locais, formando tribos. No entanto, enquanto os quilombolas sofrem com desistência, dificuldades de acesso a direitos sociais básicos, de um mínimo existencial para a dignidade humana, oportunistas se aproveitam das brechas legais para especular, lucrar, fazer reserva de mercado, em nome dessa relevante comunidade, imprescindível para a cultura e história da sociedade brasileira.
Para se evitar que se prospere uma máfia de falsos quilombolas, ou assédio, a fraude, manipulação e prejuízo aos verdadeiros integrantes dessa comunidade especialmente protegida, três medidas são fundamentais, baseado em ciência, regulamento e participação, e formatada a partir de estudos elaborados por equipe multidisciplinar, composta por servidores públicos ou em cooperação, desde que com expertise e anotação de responsabilidade técnica.
A partir da certificação, por autodeclaraçãoou reconhecimento, delas é a participação via consulta pública,, que não é a audiência pública aberta e nas quais, muitas vezes, participam grupos de interesses diversos, mas não o verdadeiro quilombo e seus integrantes. Trata-se, em verdade, da necessária oitiva, pessoal e direta, das comunidades e seus membros, que deve ter método, com coleta de dados, documentos, catalogar os acervos documentais, de artes, hábitos, fotos, histórias. Somente, a partir daí, deve ser emitido o laudo ou relatório de avaliação, o qual, ao contrário de muitas práticas atuais, não pode ser unilateral, mas com a intervenção de diversos órgãos, muito menos elaborado e subscrito por um único profissional, sem vínculo com a administração, mas por uma equipe complexa, composta por antropólogo, historiador, sociólogo, assistente social, jurídico, engenheiro agrimensor, geógrafo, no mínimo.
A regularização fundiária dos territórios quilombolas envolve as etapas de elaboração e publicação de Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), emissão de portaria de reconhecimento do território quilombola, decretação do território como de interesse social, avaliação e indenização das terras dos ocupantes não-quilombolas, desintrusão dos ocupantes não-quilombolas (com reassentamento desses quando forem público da reforma agrária) e titulação. Tudo isso requer o imprescindível consentimento dos ocupantes do quilombo de que aquela área deixará de ser sua, mas passará a pertencer a União, sob gestão da SPU.
Ao final, deve-se verificar se o processoobservou aos requisitos constitucionais dos Art. 215, § 5º do art. 216 e do art. 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, além da Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho. No plano legal e infralegal, existem normas a serem seguidas, a exemplo de: Decreto nº 4.887, de 2003; Decreto nº 5.051, de 2004; Decreto nº 6.040, de 2007; Decreto nº 6.261, de 2007; IN/INCRA nº 57, de 2009; Lei nº 12.288, de 2010; NE/INCRA/Conjunta DF e DT nº 03, de 2010;
NE/INCRA/Conjunta DF e DT nº 04, de 2011; IN/INCRA nº 72/2012; IN/INCRA nº 73/2012; Portaria Interministerial nº 210, de 13 de junho de 2014; Portaria INCRA nº 397, de 2014; Portaria INCRA Nº 175, de 2016; Portaria INCRA N° 495, de 2017.
A natureza da atuação dos servidores do INCRA, FUNDAÇÃO PALMARES E SPU, para a demarcação, portanto, é de processo administrativo e de instrumento da política nacional do meio ambiente (natureza dúplice). A importância desta classificação é transportar todos os princípios do Direito Administrativo/processo administrativo ao licenciamento ambiental (ex.: duração razoável, contraditório, ampla defesa, devido processo legal etc.). Então, na prática, a atuação destas entidades e órgão é por – ou tem natureza jurídica de – processo administrativo. O processo administrativo, qualquer que seja, pode se iniciar de ofício ou a requerimento da parte interessada. Formulado o requerimento, a Administração Pública não pode se recusar a recebê-lo (art. 6º, parágrafo único, da Lei nº 9.784, além do próprio direito constitucional de petição), tendo o dever de proferir uma decisão inicial, verificando se há as condições para a apreciação do requerimento, se é preciso complementar algum documento ou se há necessidade de conversão em diligência para o saneamento de qualquer outro vício identificado no pedido. Esta previsão, além de ser ínsita ao próprio contraditório e devido processo legal, encontra fundamento no art. 26 da Lei de Processo Administrativo (federal).
Ademais, a Lei n° 9.784/99 regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, direta e indireta (art. 1°, caput). Mas, também se aplica ao Poder Judiciário e ao Poder Legislativo, no desempenho de função administrativa (§1°, art. 1°), ao Ministério Público e ao Tribunal de Contas.
Importante destacar que a Lei n° 9.784/99 não revogou as leis que regulam os processos administrativos específicos em âmbito federal, como reza o seu art. 69 . Assim, por exemplo, os artigos da Lei n° 8.112/90, que regulam o processo administrativo disciplinar (PAD), e o Decreto n° 70.235/72, que disciplina o processo administrativo fiscal, continuam a prevalecer em suas respectivas matérias.
Todos os processos administrativos,inclusive o de demarcação e outorga de áreas Quilombolas, tem peculiaridades que o distingue do processo jurisdicional (também de aplicação da lei) e do processo legislativo (de elaboração da lei). Dentre elas estão os seus princípios, que lhes são próprios. A doutrina estabelece inúmeros princípios, mas os citados no art. 2° da Lei n° 9.784/99 são os seguintes: a) legalidade: obediência à lei e seus limites, também previsto no art. 37, caput, da CF/88; b) finalidade: correspondente ao princípio da impessoalidade, igualmente previsto no art. 37, caput, da CF/88; c) motivação: sem previsão expressa em texto constitucional, exceto quanto às decisões administrativas dos Tribunais, de acordo com o art. 93, X, da CF/88; d) razoabilidade: construção doutrinaria abraçada pela jurisprudência; e) proporcionalidade: correlato ao princípio da razoabilidade; f) moralidade: previsto no art. 37, caput, da CF/88; g) ampla defesa: previsto no art. 5°, LV, da CF/88; h) contraditório: também previsto no art. 5°, LV, da CF/88; i) segurança jurídica: princípio geral do direito sem previsão expressa no texto constitucional, mas o art. 5°, XXXVI, da CF/88, preconiza algumas de suas aplicações, tais como: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada, j) interesse público: supraprincípiodo direito administrativo, sem previsão expressa em texto constitucional, k) eficiência: previsto no art. 37, caput, da CF/88. Se não forem respeitados, o processo de demarcação será inconstitucional, ilegal e abusivo.
Além da incidência de todo regime jurídico do direito administrativo, do direito de propriedade, pública e privada, o dever de incidência da LINDB e da Lei de Liberdade Econômica, além da proporcionalidade e razoabilidade nos atos de demarcação, bem como da função social, econômica e ambiental da propriedade. Dito isso, impõe-se processos de demarcação de áreas para comunidades tradicionais precedidas do devido processo legal, de sólida base científica, que sejam planejadas, com análise do impacto orçamentário, social, ambiental, econômico, entre outros, com presunção de boa-fé e igualdade de tratamento em favor de todos os interessados, inclusive os particulares afetados.
Finalmente, não há lugar para substitutos da voz da própria comunidade, nem da falta de ampla participação e o negacionismo ao uso da ciência nos relatórios. Vale ressaltar que, ao contrário dos Indígenas, os Quilombolas, por lei, tem capacidade civil plena, e, muitas vezes são preteridos na tomada de decisão – alguns nem sabe que com a demarcação, sua propriedade passa a ser pública e inegociável, pertencente a União. Posto isso, somente será válido o processo cuja a fonte direta da pretensão sejam os indivíduos, as famílias, as próprias comunidades quilombolas, os proprietários e posseiros, o entorno, a por meio de planos locais de gestão territorial e ambiental, que consistem em projetos territoriais e ambientais específicos, submetidos ao devido processo legal administrativo, com contraditório, ampla defesa, alinhamento entre representantes da União, Estado, Município e sociedade, em alinhamento com as diretrizes fiscais e orçamentárias.
Passo seguinte ao rito, mas igualmente relevante, é que, após o reconhecimento da comunidade, não pode ser Antidemocrático, como tem sido, porque, o Comitê Gestor somente observada a paridade entre o Poder Executivo federal e as representações quilombolas, sem levar em consideração os representantes eleitos pelo povo (poder legislativo), a própria sociedade civil organizada, o setor empresarial, a comunidade científica e quaisquer outros atores inerentes a efetiva participação democrática e representativa dos legítimos interesses do povo brasileiro, bem como quando se decide que apenas aplicar-se-á nas ocupadas por comunidades quilombolas que tenham Relatório Técnico de Identificação e Delimitação publicado em Diário Oficial dos Estados ou da União, sem que tais relatórios tenham observado todo o procedimento constitucional e democrático acima descrito.
Não se pode, no mérito, admitir a criação de um latifúndio de comunidade tradicional, para atender a um pequeno número de beneficiários, baseado em meros apontamentos e autodeclarações dos interessados, sem que haja um estudo técnico que demonstre que aquele tamanho, localização e atributos (econômicos, sociais e ambientais) da propriedade são proporcionais, razoáveis, necessários, adequados e úteis a finalidade do caso concreto, pena de inconstitucionalidade e ilegalidade, bem como de, na prática, deixar de cumprir as diversas funções da propriedade, gerando pobreza, violência, dano ambiental, grilagem, todo tipo de exploração e invasão criminosa, em detrimento dos antigos e legítimos proprietários, bem como da comunidade supostamente beneficiada.
Somente desta forma haverá a garantia ao direito dos Quilombolas com o fim do abuso em nome das comunidades, sem os desvios e interesses escusos, além de proteger vulneráveis e a essência das pessoas e das comunidades. Sem respeitar isso, estão em risco a Constituição, a democracia, direitos fundamentais, direitos humanos e, sobretudo, a história e a essência dos Quilombolas, que podem ser usados, manipulados ou usurpados por arautos dos direitos difusos e coletivos, mas que militam ou por ideologia, poder, riqueza ou até por obscuros interesses ainda mais nefastos.
Artigo/Por: Georges Humbert